quarta-feira, 29 de outubro de 2014

TERCEIRIZAÇÃO, CORRUPÇÃO, A ADMINISTRAÇÃO REFÉM E A FALÁCIA DA EFICIÊNCIA

Ileana Neiva Mousinho*


A terceirização de serviços tem sido apresentada à sociedade como uma forma do Estado brasileiro ter mais eficiência na prestação de serviços públicos. Por essa propaganda, se a Administração Pública contrata empresas prestadoras de serviços para executar atividades que não são atividades tipicamente estatais, e concentra seus esforços nas atividades estatais típicas (saúde, educação, segurança pública), o Estado maximizaria a sua capacidade de bem realizar essas atividades essenciais, realizando os direitos fundamentais dos cidadãos. Por outro lado, ao cometer as atividades não estatais a empresas especializadas, o Estado aumentaria o grau de satisfação da sociedade, uma vez que, com a sua especialização, essas empresas prestariam um serviço muito melhor.
Ledo engano! Em primeiro lugar, o que vemos hoje não é, também, o projeto em execução, de alguns governantes, de terceirizar saúde, educação e segurança? Logo, o discurso de que só seriam terceirizadas atividades que não fossem essenciais ao Estado já se mostrou falso.
Em segundo lugar, como distinguir o que é atividade estatal típica? A limpeza urbana não é atividade essencial da administração pública? E a limpeza urbana não está relacionada ao direito fundamental à saúde, pois se relaciona à higiene e à prevenção de doenças?
Em terceiro lugar, que especialização detêm as  empresas prestadoras de serviços (na verdade, são empresas de locação de todo tipo de mão de obra),  se, quando entregam o orçamento dos seus serviços à administração pública, nas chamadas “planilhas de custos e formação de preços”, inserem todos os gastos que terão com os empregados que utilizarão nos contratos de prestação de serviços, inclusive treinamentos. Ou seja, a administração pública contratante paga pelo treinamento dos empregados da contratada. Ora, mas não contratou a contratada pela sua expertise? Então, por que tem que pagar pelo treinamento dos seus empregados?
 O absurdo é maior, ainda, quando se sabe que a empresa contratante dos empregados não raro aproveita os empregados da contratada anterior, cujo contrato com a administração pública terminou, e que estão trabalhando no órgão público há tempos, e, portanto, mais do que treinados na rotina e nos serviços naquele órgão. No entanto, contratação após contratação, lá está, nas planilhas de custos e formação de preços dos contratos, a cobrança dos valores de treinamentos. E pior, tais treinamentos não são sequer realizados.
O Ministério Público do Trabalho em várias investigações e ações judiciais já demonstrou que, nessas sucessivas contratações de empresas prestadoras de serviços terceirizados, os empregados são coagidos a devolver verbas rescisórias, sob pena de não serem “aproveitados” na empresa que será a nova contratada da administração pública. 
O que a sociedade brasileira vê desfilar pelo noticiário da TV e dos jornais são casos e casos de corrupção em que a terceirização é o mecanismo da corrupção. Cita-se, um exemplo: a Operação Hígia, deflagrada nos Estados do Rio Grande do Norte e Paraíba, onde as investigações demonstraram que as carteiras de trabalho dos empregados eram fotocopiadas para comprovar aos gestores de contratos o número de empregados previstos no contrato, mas, na verdade, a contagem do número de empregados, feita por agentes da Polícia Federal, nos diversos hospitais, demonstrou que havia um número menor de empregados trabalhando. Repetia-se o mesmo nome de empregado, e a cópia de suas carteiras de trabalho, em diversos locais de trabalho.
Sob o discurso da eficiência da terceirização, o que se emerge, na realidade, é a eficiência com que a terceirização tem sido utilizada para fraudes com essa.
Outra forma de corrupção ocorre com a contratação emergencial, com dispensa de licitação, de empresas prestadoras de serviços terceirizados ou de falsas Organizações Sociais (OS), que superfaturam os preços dos contratos de prestação de serviços e servem, ainda, aos interesses econômicos e eleitorais do político que engendrou a sua contratação, disponibilizando-se a contratar, como empregados, as pessoas indicadas pelo político.
Além do valor superfaturado ser rateado entre as empresas e o(s) administrador (es) público(s) e político(s) – ganhos financeiros - há ainda o ganho eleitoral, pois o político emprega seus cabos eleitorais ou pessoas que passarão a votar nele. E tudo isso, em burla ao concurso público e ao princípio da impessoalidade da administração pública.
Há muito tempo a linha entre atividade-fim e atividade- meio vem sendo burlada pela administração pública. A terceirização dos serviços de saúde tem ocorrido em algumas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) em todo o Brasil, com contratação de organizações sociais. Em Natal, em passado recente, o Município de Natal terceirizou com a Associação Marca, que quarteirizou com a Associação Salute, ambas do Rio de Janeiro, a administração e contratação de pessoal para a UPA de Pajuçara. Após atuação do Ministério Público Estadual e designação judicial de um interventor, houve a economia de milhões de reais para os cofres municipais.
Terceirizar, com certeza, não é mais barato...
Um outro dogma pró terceirização é de que a terceirização de serviços de saúde gera mais eficiência, pois os servidores do SUS não se interessaram pelo serviço. Lança-se no servidor público a pecha de descompromissado, para “vender o peixe” da terceirização, enaltecida como mais eficiente porque não se tem as “amarras” da administração pública (contrata-se, diretamente, sem licitação; compra-se, diretamente, sem licitação), como se o mal estivesse no procedimento licitatório, quando está na falta dele ou no seu desvirtuamento.
Há, portanto, uma propaganda levada a efeito há muito anos para o cidadão achar que a terceirização é boa para o Estado brasileiro. No entanto, o que o cidadão atento pode observar é o contrário, pois terceirizar tem saído muito caro para o Estado brasileiro: ou há superfaturamento de preços; ou empresas “somem”, deixando os seus empregados sem o pagamento de verbas salariais e rescisórias, e o Estado arca com a responsabilidade subsidiária por tais  débitos trabalhistas.
A verdade é que, ao escolher terceirizar serviços, os administradores públicos, no caso específico da saúde, educação e segurança, passaram a não investir em tais serviços. Hospitais desaparelhados, anos sem fazer concurso público, ou seja, sucateamento do sistema público de saúde, para que, quando a “solução” da terceirização fosse dada, a ideia caísse em solução fértil. Uma população desencantada com os problemas da saúde pública, iria ficar encantada com uma UPA que funcionasse com um relógio suíço, totalmente terceirizada. Só que não funciona... Custa mais caro e não funciona.
Os valores repassados para as empresas prestadoras de serviços e Organizações Sociais, se fossem destinados aos serviços públicos também gerariam eficiência. E se há, hoje, ineficiência, não é ela gerada pela Lei de Licitações, mas por mau gerenciamento dos recursos públicos.
Então, por que não investir em treinamento e capacitação dos servidores públicos; por que não instituir cargos em comissão em valores compatíveis com a responsabilidade de ser diretor de hospital, e exigir desse gestor a capacitação e a formação necessárias para ocupar tal cargo, com dedicação exclusiva?
Em vez de qualificar e valorizar o servidor público, e também, exigir disciplina, cumprimento de horário e eficiência, e, em caso de descumprimento desses deveres, aplicar as sanções previstas nos estatutos dos servidores públicos, a opção do Estado brasileiro tem sido aumentar o espectro da terceirização, invadindo a educação, a saúde e a segurança pública.
Se contratar empresas prestadoras de serviços tem sido a opção para as chamadas atividades-meio; contratar Organizações Sociais, OSCIPS, ONGs (do chamado Terceiro Setor) tem sido a opção, nas atividades-fim. Justifica-se que se trata do Terceiro Setor contribuir com o Estado, para a realização de suas atividades essenciais.
Um exame do que ocorre na realizada destrói essa tese.
Basta verificar-se que, se há alegação de carência de recursos estatais para a prestação de serviços de saúde e educação, só haveria real ajuda dessas organizações sem fins lucrativos, se elas trouxessem recursos financeiros adicionais para o Estado, de modo a suplementar a capacidade financeira estatal, e, assim, juntos prestarem os serviços de educação e saúde.
O que se observa, porém, é que essas entidades (ou pseudo entidades) sem fins lucrativos, recebem recursos do Estado e não entregam bens ou recursos financeiros para suplementar a capacidade estatal de prestar serviços públicos. São contratadas, apenas, com a alegação de que têm especialização naquela área, que sabem administrar muito bem, que arregimentarão empregados sem as amarras do setor público (leia-se concurso público) e que despedirão, com facilidade (sem necessidade de processo administrativo prévio, com ampla defesa), os empregados ineptos ou desinteressados. Em suma, essas Organizações Sociais e congêneres, vendem, tão somente, a terceirização, e no bojo dessa, infelizmente, tem-se sido verificada a corrupção.
Essa realidade deve ser muito bem analisada pelo cidadão, para que seja crítico em relação ao discurso em defesa da terceirização.
E não é preciso mais do que um exercício de raciocínio lógico para os cidadãos entenderem que, quando há terceirização da limpeza urbana, ou da poda de árvores, como se pode mensurar corretamente o serviço prestado? Faz-se uma previsão de gasto, estima-se que tantas toneladas de lixo serão recolhidas e tantas árvores serão podadas. Mas como controlar o número real, como saber se a administração pública não está pagando a mais?
Os valores vultosos dos contratos de prestação de serviços de limpeza urbana e a “complexidade” de suas planilhas de preços (argumento sempre utilizadas para que não tenham a necessária transparência) não deixam dúvidas: não se trata de um serviço barato e, considerando-se a variação do lixo recolhido, apesar da possibilidade de pesá-lo, as estimativas de preços, com certeza, não são feitas a menor.

Cita-se como exemplo dessa assertiva, o fato de que o Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Norte corrigiu o projeto básico e os preços dos serviços de coleta de lixo de Natal, que seriam objeto de licitação. O Município acatou a recomendação e lançou edital com o preço do serviço calculado com a análise conjunta dos técnicos do Tribunal de Contas do Estado. O resultado? As empresas que prestavam serviços não aceitaram o preço proposto e a licitação foi deserta. Destaque-se que o valor estimado pela administração pública era de R$ 333,5 milhões e o preço orçado pelas empresas variava de R$ 391,8 a 393,2 milhões. Uma diferença de preço em torno de 60 milhões de reais. 


Portanto, além dos serviços terceirizados custarem muito caro, a terceirização de serviços torna a administração pública refém das contratadas. Se a administração não aceitar o preço proposto, não recebe o serviço, e já sem estrutura para executá-lo, mercê dos sucessivos anos sem concurso público e sem aquisição de máquinas e equipamentos, fica refém das contratadas.
 Um outro fato confirma que a Administração Pública já está refém da terceirização. Os serviços terceirizados por intermédio de cooperativas médicas são interrompidos quando a Administração Pública não aceita os preços propostos pelas entidades. No Rio Grande do Norte, várias cooperativas médicas prestam serviços ao SUS, em especialidades  como cardiologia, pediatria, ortopedia, neurocirurgia e anestesia. Logo, setores essenciais da saúde são “terceirizados” e não há médicos estatutários em número suficiente, nessas especialidades. Não aceitar o preço proposto, significa paralisar os serviços de saúde, o que, efetivamente, ocorreu, várias vezes, quando o Estado do Rio Grande do Norte e o Município de Natal, tentaram negociar valores menores.
Diante desse quadro, que evidencia total dependência do Estado das cooperativas médicas, pela opção errônea em não realizar concurso público e não elaborar um plano de cargos e salários para a carreira de médico, o  que se observa é que a administração pública fica refém das cooperativas médicas.
Quando o Estado do Rio Grande do Norte decidiu não contratar mais cooperativas e realizar concurso público, precisou,  dada a necessidade emergencial, realizar primeiro uma chamada pública, até que fosse organizado o concurso público. Foram realizadas cinco chamadas públicas para contratar médicos. Porém, não conseguiu encontrar profissionais que se interessassem pelo certame, inclusive, tendo o Ministério Público Estadual investigado que os profissinais eram convencidos pelas cooperativas a não aderirem ao certame. 
A administração pública além de refém, sofre calote na terceirização.
Não é fato desconhecido, que, ao final de muitos contratos de prestação de serviços terceirizados, as empresas contratadas “somem” e não pagam aos seus empregados as verbas rescisórias, responsabilidade que passa a ser suportada (duplamente) pela administração pública.
Mecanismos têm sido pensados ao longo do tempo para controlar a execução dos contratos de prestação de serviços. A Lei de Licitações estabelece, no seu art. 67, que a execução dos contratos deverá ser acompanhada e fiscalizada por um representante da Administração Pública, especialmente designado para tal fim. A Lei de Transparência determina que os entes da Federação disponibilizarão a toda pessoa física ou jurídica os dados referentes aos contratos de prestação de serviços terceirizados, com nomes das empresas contratantes e valores da contratação. Essas informações, todavia, não são suficientes, dado que a corrupção na terceirização de serviços manifesta-se, também, pelo superfaturamento dos contratos em relação ao número de empregados realmente colocados à disposição da administração pública, sendo notórios os casos em que, no contrato há mais empregados do que o número realmente disponibilizado nos postos de trabalho.
Portanto, controlar quantas toneladas de lixo foram recolhidas, quantas árvores cortadas, quantos empregados da empresa prestadora de serviços terceirizados estão realmente trabalhando, se esses empregados estão recendo as verbas trabalhistas de forma correta, se o serviço está sendo corretamente prestado, se os encargos trabalhistas e impostos estão sendo recolhidos pela contratada, revela-se uma tarefa hercúlea e até impossível para o servidor público designado gestor do contrato e para o cidadão. É uma tarefa difícil para o Ministério Público, para as Controladorias e para os Tribunais de Contas.
No afã de mais controle, e para evitar a terceirização de serviços, mais mecanismos são criados, como a conta vinculada aos contratos de prestação de serviços. Por esse meio, a Administração Pública não entrega todos os recursos para as empresas prestadoras de serviços, e destina parte dos recursos a uma conta vinculada ao contrato de prestação de serviços, depositando nessa conta, que só pode ser movimentada por ordem da Administração Pública, as verbas de FGTS, aviso prévio, 13º salário e férias, que são verbas que eram pagas de forma diferida, a cada mês, em cada fatura, mas, muitas vezes, no momento de pagá-las ao trabalhador, a empresa alegava que não tinha recursos.
Em mais um aspecto denotador da corrupção, empresas que recebem, por exemplo, faturas de 10 meses consecutivos, quando chega o momento de pagar a metade do 13º salário (30 de novembro de cada ano), e, portanto, já receberam da Administração Pública 10/12 da verba do 13º salário, alegam que não têm recursos para pagar aos empregados. Mas como, se já receberam 10/12, e só têm que pagar 6/12, já que o restante pode ser pago até 20 de dezembro de cada ano? É por isso que se afirma que, basta o cidadão refletir sobre esses fatos, que verá o mal que é a terceirização, não só para os empregados, mas para a sociedade brasileira, pela sua potencialidade de propiciar a corrupção.
Com a conta vinculada, busca-se evitar que os recursos estatais sejam desviados pelas empresas, que em vez de utilizá-los para pagar aos empregados utilizados no contrato, os utilizam para outros fins. Mas, deve-se convir que é uma medida que exige a capacitação dos gestores públicos, impondo-lhes mais uma responsabilidade. E tudo porque, já se verificou, na prática, que não é possível confiar nas contratadas que prestam serviços terceirizados.
É urgente, portanto, que a sociedade manifeste-se contra a terceirização nas atividades estatais típicas e exija maior transparência nos contratos de prestação de serviços terceirizados nas atividades-meio, exigindo-se, por exemplo, que nas páginas de transparência sejam publicadas as planilhas de custos e formação de preços dos contratos; as datas em que foram efetuados os pagamentos das faturas; os nomes e CPFs dos empregados terceirizados lotados em cada posto de trabalho, de modo a evitar-se empregados fantasmas e utilização do nome e CPF de um mesmo empregado em vários contratos, quando, obviamente, não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo.
Sem controle, da forma como está se espraiando, a terceirização de serviços não traz eficiência ao serviço público. O que a realidade demonstra é que a terceirização de serviços tem sido um mecanismo para a corrupção, propiciando o enriquecimento ilícito de alguns empresários e servidores públicos, em detrimento de trabalhadores cada vez mais explorados no trabalho e mais suscetíveis a acidentes de trabalho; e em prejuízo do erário público..

  Ileana Neiva Mousinho é Procuradora do Trabalho no Rio Grande  do Norte.

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