terça-feira, 21 de outubro de 2014

A Face Trágica da Terceirização Trabalhista: Do Caso Rana Plaza ao Dilema Brasileiro



Pedro Augusto Gravatá Nicoli[1]

Em 24 de abril de 2013, 1.138 trabalhadoras e trabalhadores morreram e mais de 2.000 ficaram gravemente feridos em um dos maiores acidentes industriais da história da humanidade. A tragédia ocorreu no complexo têxtil Rana Plaza, em Savar, na periferia de Daca, capital de Bangladesh, país de mais de 150 milhões de habitantes no sul da Ásia. O Rana Plaza era um edifício de nove andares, no qual operavam diversas fábricas têxteis, onde milhares de pessoas trabalhavam em condições de segurança absolutamente precárias. Com o peso e a vibração das muitas máquinas de costura em operação, somados aos problemas estruturais, de construção e conservação, o edifício ruiu, levando consigo a vida dessas centenas de mulheres e homens.
Engana-se quem pensa ser esta uma questão local, distante, restrita a um país sabidamente descumpridor de normas mínimas de proteção ao trabalho humano. Trata-se, ao contrário, de uma tragédia de proporções globais, que, com a dor imensurável das centenas de vítimas e suas famílias, expõe as artérias da lógica contemporânea da exploração de trabalho. Dezenas de grandes marcas internacionais de confecção tinham relações produtivas diretas e indiretas com as fábricas do Rana Plaza, sobretudo por cadeias de terceirização. Gigantes como Carrefour, Walmart, Benetton, GAP, Bonmarché, El Corte Inglés e Primark, entre muitas outras, fabricavam seus produtos naquele espaço de trabalho desumanizado. Nos escombros, entre os corpos de trabalhadores e toneladas de entulho, foram encontrados inúmeros registros de pedidos dessas multinacionais, além de peças prontas e identificadas, etiquetas e embalagens que não deixam dúvida desse envolvimento. Na sanha pela lucratividade, mancham de sangue humano suas criações de moda.
A escala assustadora do desabamento do Rana Plaza escancara a questão da exploração do trabalho no mundo globalizado. Vêm à tona os esquemas de desconcentração produtiva transnacional e de terceirização, pelos quais grandes empresas buscam espaços de produção em que normas de proteção aos trabalhadores têm menor rigor, em prática que ficou conhecida como dumping social. Implanta-se, como aponta Alain Supiot (2008), um verdadeiro “shopping” de legislação, em que países mais pobres entram em regime de concorrência para a atração de investimentos internacionais. Livres de restrições estatais, os grandes grupos econômicos escolhem, como quem compra qualquer tipo de produto, espaços locais que ofereçam menos leis sociais e, assim, custem menos, mesmo que com sacrifícios à segurança e à vida de trabalhadores.
O que um evento como esse revela, em última análise, é uma correlação estrutural entre as práticas produtivas e “técnicas de gestão” do capitalismo global e os efeitos desumanizadores do trabalho explorado sem limites. Não se trata de uma mera fatalidade, um acaso ou imprevisibilidade. Em esquemas de terceirização há, em verdade, uma relação de assunção consciente de riscos pela diminuição das proteções. São riscos que, além de conhecidos e assumidos, chegam a ser estimulados e contabilizados para o aumento da lucratividade na produção.


Desde a ocorrência da tragédia do Rana Plaza, a discussão sobre a responsabilidade social de empresas em cadeias produtivas ganhou novo fôlego. Redimensionado em sua força jurídica, o próprio conceito de responsabilidade social afasta-se de um fundo publicitário e passa a incorporar instrumentos de real imputação por toda a cadeia de agentes envolvidos, a despeito das dificuldades formais que as ordens jurídicas possam apresentar. Reforçam-se instrumentos como o dever de vigilância, a noção de esfera de influência e relativiza-se a clássica defesa do desconhecimento das práticas por parte do tomador final de serviços.
Novas estratégias, papéis institucionais e atores se aliam nesse quadro. É o que se vê no caso do Acordo Rana Plaza, construído após enorme pressão diante da tragédia de 2013, com a participação de atores governamentais, além de sindicatos de trabalhadores, ONGs e a Organização Internacional do Trabalho, que assumiu a condução dos trabalhos. Tal acordo resultou em uma experiência inovadora, com a formação de um fundo internacional administrado pela OIT, em que cotizações das empresas envolvidas, além de doações, visam indenizar vítimas e fazer face às despesas médicas. Originalmente, previu-se a necessidade de 40 milhões de dólares para tal fundo, dos quais, até o presente, cerca de 18 milhões foram levantados, tendo os repasses para as vítimas e famílias sido iniciados neste ano.
E o Brasil nesta história? Os últimos movimentos institucionais em relação à disciplina trabalhista brasileira demonstram que o caso Rana Plaza pode não estar assim tão distante. A figura da terceirização, prática que, em qualquer de suas escalas, resulta em precarização generalizada, afeta intensamente também a realidade local. A possibilidade de livrar-se juridicamente das responsabilidades da prestação de trabalho, aproveitando-se dos resultados financeiros dele, faz com que atores econômicos predatórios invistam todos os seus esforços na máxima admissão da figura. No Brasil, esse é um tema que tem já história relativamente longa, e se coloca hoje no centro da pauta trabalhista, com alguns movimentos de extremo perigo: o Projeto de Lei 4.330/2004, a pressão do patronato pela ampliação das possibilidades de terceirização e, mais recentemente, a admissão por parte do Supremo Tribunal Federal de repercussão geral no tema, sinalizando uma potencial mudança nos limites (já vulneráveis) da compreensão do Tribunal Superior do Trabalho a respeito. O assunto povoa, ainda, a agenda política da eleição presidencial, com algumas posições amplamente favoráveis à terceirização como estratégia de produção.
É justamente aí que os laços de conexão global se fecham. Permitir-se a ampliação da terceirização significa contribuir diretamente com um modelo de exploração que se constrói na fragmentação, incerteza e precariedade. Os estudos sobre os efeitos negativos da terceirização em todas as esferas da vida humana são muitos, revelando impactos profundamente negativos que vão desde a dificuldade de consolidação da identidade social e emancipação coletiva do trabalhador, altos índices de adoecimento profissional, acidentes e mortes, a vulneração da segurança em geral, até o rebaixamento de padrões salariais e a inviabilização prática da representação coletiva. E nada disso é efeito colateral. É precisamente com base nesses elementos que a terceirização se torna uma bandeira daqueles que querem promover redução de custos, ainda que com base nas mais odiosas violações a direitos humanos. Tudo isso leva a crer que, na linha das estratégias do mundo global da produção, Bangladesh, Brasil ou qualquer outro país podem estar muito mais próximos do que se imagina, a depender dos caminhos institucionais tomados.




[1] Mestre e Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, com período de estágio doutoral junto ao Collège de France, em Paris. Membro do grupo de pesquisa Trabalho, Constituição e Cidadania. Bolsista CAPES.

Nenhum comentário:

Postar um comentário