sábado, 12 de julho de 2014

A TERCEIRIZAÇÃO E O SUPREMO (PARTE 5)


O que esperar da repercussão geral em termos de direitos trabalhistas?

Rodrigo Leonardo de Melo Santos

A controvérsia acerca da proibição da terceirização trabalhista, a partir da distinção jurisprudencial entre atividade-fim e atividade-meio, é relevante questão de matiz constitucional e, dado o seu potencial multiplicador, transcende os interesses das partes de um único processo.

Foi esse, ao menos, o entendimento assentado em maio deste ano pelo Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer a existência de repercussão geral da matéria articulada no ARE 713.211, cujo julgamento vai servir de paradigma para todos os recursos extraordinários sobre idêntica questão.

No mais recente capítulo da disputa em torno da licitude da terceirização de serviços, após intensas discussões acerca do PL 4.330/2004 na Câmara dos Deputados em 2013, a decisão da Corte convida-nos a divisar possíveis perspectivas de encaminhamento do tema, diante da abordagem que vem sendo conferida pelo STF às questões trabalhistas em repercussão geral.

Afinal, a possibilidade de exame judicial da terceirização sob o aspecto constitucional nos remete à recorrente visão do Poder Judiciário como arena indispensável à tutela dos direitos fundamentais (como os de viés trabalhista).

Na esteira desse entendimento, tem-se defendido que, mais que introduzir um requisito de admissibilidade para o recurso extraordinário, a criação da repercussão geral, com mecanismos de filtragem e de julgamento por amostragem, permitiu ao STF concentrar esforços exatamente em seu papel de guarda da Constituição e dos direitos e garantias fundamentais.

E mais: a introdução do instituto seria reflexo de uma tendência de revisão do paradigma individualista em que se estruturou o processo civil brasileiro, compatibilizando-o com a ascensão dos direitos sociais, ao proporcionar à Corte as ferramentas necessárias à entrega de uma tutela efetiva desses direitos (FERRAZ, 2011).
Resta saber se a teoria tem encontrado amparo na prática do Tribunal, quando do enfrentamento das temáticas trabalhistas no âmbito da repercussão. E, nesse ponto, sobressai, primeiramente, a baixa permeabilidade do filtro às controvérsias dessa natureza.

Com efeito, muito embora os ministros da Corte já tenham submetido ao todo 752 recursos paradigmas à sistemática da repercussão ao longo dos sete anos de vigência do instituto, contam-se tão somente 65 casos [1] em que suscitada alguma questão de teor trabalhista (menos de 9% dos temas). A pequena quantidade contrasta com o volume de processos remetidos ao STF pelo Tribunal Superior do Trabalho, que só no ano de 2011, por exemplo, admitiu e encaminhou ao Supremo 84 recursos extraordinários, além de 2.570 agravos em RE.

Também no exame da preliminar pelo colegiado, os recursos sobre matéria trabalhista não colhem resultados expressivos: em apenas 52,3% desses casos foi reconhecida a repercussão geral, contra o percentual de 69,4% do universo de temas. E a recusa do Supremo em examinar controvérsias trabalhistas, nessa etapa, se dá quase que exclusivamente por motivo de infraconstitucionalidade. De fato, foi esse o desfecho de 29 dos 31 recursos em que declarada a inexistência de repercussão geral, como no AI 751.763, em que discutida a responsabilidade subsidiária de tomador de serviços, em decorrência do não pagamento de verbas trabalhistas devidas – questão correlata ao tema da terceirização afetado em maio pelo Min. Luiz Fux.

Em segundo lugar, no que toca à identidade dos recorrentes, destaca-se o fato de que apenas 10 dos recursos sobre matéria trabalhista foram interpostos por pessoas físicas. Destes, dois REs foram desprovidos e apenas um foi provido, aguardando o restante a análise de mérito. Já entre os 21 apelos movidos por organizações contra indivíduos, há 4 decisões de provimento em alguma medida, 3 pelo desprovimento e 14 apelos pendentes de julgamento. É dizer, percebe-se nesse conjunto de processos uma maior abertura do filtro aos recursos manejados por organizações em face de atores individuais.

Sob um terceiro ângulo, o reconhecimento da repercussão geral pelo STF, ao mesmo tempo em que firma a competência da Corte para decidir certas controvérsias em termos constitucionais, tem se tornado um mecanismo de diferimento da solução de litígios. São 522 temas com repercussão reconhecida, dos quais 364 ainda não tiveram a questão de fundo apreciada, fazendo com que o desfecho de uma série de processos permaneça num limbo, aguardando o pronunciamento no caso paradigma. Isso porque, dentre outras razões, o reconhecimento de repercussão geral pela Corte tem se dado numa velocidade superior à sua capacidade de julgamento de mérito.
A situação não é diferente em relação aos temas trabalhistas: dos 34 casos em que reconhecida a existência de repercussão geral, carecem de exame de mérito 23 recursos extraordinários, alguns na fila de espera há mais de 5 anos. Pende, por exemplo, desde 2009 a solução da controvérsia relativa à responsabilidade subsidiária da Administração Pública por encargos trabalhistas gerados pelo inadimplemento de empresa prestadora de serviço terceirizado (RE 760.931). Em decorrência deste tema, encontravam-se sobrestados ao menos 20.905 processos, até maio de 2014.

Nesse quadro, a recém-afetada controvérsia acerca da licitude da terceirização integra a restrita lista de matérias trabalhistas que ultrapassaram a seletividade do controle difuso de constitucionalidade do STF e tiveram a repercussão geral reconhecida. Quanto ao mais, soma-se à maioria de casos em que figura o empregado no polo passivo do recurso, sendo a recorrente organização empresarial.

Por outro lado, dada a escassez de decisões de mérito em recursos sobre questões trabalhistas já sujeitos à sistemática da repercussão geral, seria ainda prematuro apontar com segurança uma inclinação do STF favorável ou contrária ao trabalhador, em termos de terceirização. Sem embargo, a manifestação do relator no recurso paradigma, referendada pela maioria dos votantes, já evidencia perigoso encaminhamento da questão em favor da tese recursal, quando afirma que “a liberdade de contratar prevista no art. 5º, II, da CF é conciliável com a terceirização dos serviços para o atingimento do exercício-fim da empresa”.

Quando menos, é já evidente a tendência a protrair-se no tempo o julgamento da questão de fundo, não havendo na atual regulamentação do instituto nenhum prazo legal para o exame de mérito pela Corte, tampouco para a duração do sobrestamento dos recursos sobre a mesma matéria. E, talvez, pode estar na ausência mesmo de definição da controvérsia por tempo indeterminado um dos maiores perigos para os direitos do trabalhador.

Ao se tratar, aqui, de um tema há muito pacificado no âmbito da Justiça do Trabalho, em nível legal, a postura até então adotada pelo STF de corretamente denegar seguimento aos recursos extraordinários, com base em sua jurisprudência pela infraconstitucionalidade da matéria, permitia a continuidade e o encerramento desses processos de forma mais célere e previsível.

Todavia, reconhecida a repercussão geral e superado o anterior entendimento da Corte, não há mais previsão alguma para o trânsito em julgado dos recursos que estão ou venham a ser sobrestadas em decorrência do ARE 713.211, até o derradeiro julgamento pelo Supremo. Ou seja, processos para os quais anteriormente se poderia prever um desfecho quase certo em prol do trabalhador ganham sobrevida, postergando indefinidamente a fruição de parcelas e benefícios por vezes essenciais à parte mais fraca da relação trabalhista.

Obviamente, há ainda o risco de reversão da sedimentada jurisprudência trabalhista após toda a espera, quando do julgamento de mérito do recurso paradigma. Igualmente, é de se imaginar que a mera afirmação da competência da Corte para proferir a última palavra a respeito da terceirização, em termos constitucionais, pode influir no rumo de futuras deliberações legislativas, expandindo ou limitando as perspectivas de atuação do Congresso.

Nessa equação, os únicos beneficiados com a intervenção do Supremo Tribunal Federal pela via da repercussão geral, mesmo que sem a intenção da Corte, tendem a ser os próprios partidários da liberalização da prática da terceirização, que além de prolongar a duração dos litígios sobre a matéria, ganham uma nova arena para expor suas demandas, por ora arrefecidas no Legislativo.

O retorno estratégico do embate ao Judiciário, fazendo uso dos efeitos da sistemática criada pela EC 45/2004, merece ser visto, portanto, com alguma desconfiança. Afinal, os dados sugerem que a introdução da repercussão geral, embora potencialmente tenha ampliado o impacto político, social e econômico das decisões proferidas pelo STF, na via do controle difuso de constitucionalidade, tem apresentado duvidosa eficácia na garantia de direitos fundamentais do trabalhador.

Ademais, lembrando que ainda vigora o entendimento de que o recurso extraordinário não possui causa de pedir aberta, a tentativa de apresentar o tema à Corte sob o viés seletivo de uma liberdade contratual extraída do art. 5º, II, da Constituição, sem fazer menção a outros parâmetros constitucionais que trazem a lume os reflexos sociais da controvérsia, parece apostar na tese de Ran Hirschl de que os tribunais superiores e cortes constitucionais ainda lidam mais facilmente com conflitos moldados ao discurso dos direitos liberais e da não intervenção na esfera privada, relutando em dar passos mais largos em matéria de justiça distributiva ou de direitos sociais.

É essa, naturalmente, a impressão passada pelo acórdão que reconheceu a repercussão geral do tema, quando se assevera que “a proibição genérica de terceirização calcada em interpretação jurisprudencial do que seria atividade-fim pode interferir no direito fundamental de livre iniciativa, criando, em possível ofensa direta ao art. 5º, inciso II, da CRFB, obrigação não fundada em lei capaz de esvaziar a liberdade do empreendedor de organizar sua atividade empresarial de forma lícita e da maneira que entenda ser mais eficiente”.

Como já se afirmou aqui em outra oportunidade, não se pode perder de vista que, em último grau, o que está em jogo efetivamente é uma questão política, de definir o modelo de relação de trabalho a prevalecer no Brasil: o que mercantiliza o trabalhador ou o que visa assegurar-lhe condições para o exercício digno da atividade laboral.

Nesse sentido, consideradas as perspectivas acima delineadas a partir dos dados da repercussão geral, o deslocamento do tema da terceirização de serviços do Congresso Nacional, onde até pouco tempo foi objeto de acirrados debates, para o âmbito do controle difuso de constitucionalidade do Supremo Tribunal Federal, torna mais que pertinente o alerta de José Maria Maravall de que a judicialização da política não apenas termina com conclusões políticas, mas, sobretudo, começa com intenções políticas.

Notas:

[1] Em relação à metodologia, elegeu-se a indexação de assuntos realizada pelo STF como critério objetivo para a distinção de matérias trabalhistas dentre o universo de recursos extraordinários afetados à repercussão geral. A esse critério geral, somaram-se os apelos excepcionais em que presente discussão acerca da competência ou não da Justiça do Trabalho para processar e julgar determinadas controvérsias.

Referências:

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/principal/principal.asp>. Acesso em 07/07/2014.
BRASIL, Tribunal Superior do Trabalho. Relatório Geral da Justiça do Trabalho – Ano de 2011. Disponível em: < http://www.tst.jus.br/estatistica/2011>. Acesso em 07/07/2014.
FERRAZ, Taís Schilling. Repercussão geral – muito mais que um pressuposto de admissibilidade. In: Repercussão geral no recurso extraordinário: estudos em homenagem à Ministra Ellen Gracie (coord. Leandro Paulsen). Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011.
HIRSCHL, Ran. Towards juristocracy: the origins and consequences of the new constitutionalism. Cambridge: Harvard University Press, 2007.
MARAVALL, José Maria. The rule of law as a political weapon. MARAVALL, José Maria; PRZEWORSKI, Adam. Democracy and the rule of law. New York, 2003, p. 261-301.

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Rodrigo Leonardo de Melo Santos é advogado e mestrando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília.

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