segunda-feira, 2 de junho de 2014

A TERCEIRIZAÇÃO E O SUPREMO (PARTE 1): E vamos à luta (outra vez)

(por João Gabriel Lopes)


Volta e meia, trabalhadores e trabalhadoras se veem às turras com as tentativas de segmentos do empresariado nacional de, por meio da implantação de sofisticados mecanismos de gestão, empreender a expropriação das garantias fundamentais do operariado consolidadas pelo direito brasileiro.

No ano passado, o intento de aprovação do Projeto de Lei nº 4.330/2004, de autoria do Deputado Federal Sandro Mabel, despertou forte resistência do movimento sindical organizado. Para quem não recorda, trata-se da tentativa de expansão desmesurada das possibilidades de terceirização trabalhista no Brasil, para além das situações já possibilitadas pelo entendimento firmado há mais de vinte anos pela Súmula nº 331, do Tribunal Superior do Trabalho (TST).

À época, a matéria gerou intensa reflexão do grupo, a qual gerou produções acadêmicas e um manifesto que recebeu a adesão de dezenas de juristas. Contribuímos, assim, para a intensificação dos debates sobre a questão, compondo o conjunto de manifestações que acarretaram uma solução provisória ao problema – a cessação, até o momento, da tramitação da proposta legislativa.

As tentativas de impor graves prejuízos a trabalhadores, no entanto, atacam por várias frentes. E calhou de ser a via judicial a mais recente delas, impondo-se uma intensa mobilização e não menor produção intelectual de quem defende a causa dos direitos trabalhistas no sentido de obstar qualquer forma de intensificação da precarização das condições de trabalho no país.

No último dia 19 de maio, o Plenário Virtual do Supremo Tribunal Federal reconheceu a existência de repercussão geral em matéria de terceirização trabalhista de atividade-fim. O tema foi suscitado pelo relator do ARE (Agravo em Recurso Extraordinário) nº 713.211/MG, ministro Luiz Fux, com a seguinte manifestação, assentida pela maioria dos integrantes da corte, vencidos os ministros Ricardo Lewandowski e Teori Zavascki e a ministra Rosa Weber[1]:

"RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. POSSIBILIDADE DE TERCEIRIZAÇÃO E SUA ILÍCITUDE. CONTROVÉRSIA SOBRE A LIBERDADE DE TERCEIRIZAÇÃO. FIXAÇÃO DE PARÂMETROS PARA A IDENTIFICAÇÃO DO QUE REPRESENTA ATIVIDADE-FIM. POSSIBILIDADE.

1. A proibição genérica de terceirização calcada em interpretação jurisprudencial do que seria atividade-fim pode interferir no direito fundamental de livre iniciativa, criando, em possível ofensa direta ao art. 5º, inciso II, da CRFB, obrigação não fundada em lei capaz de esvaziar a liberdade do empreendedor de organizar sua atividade empresarial de forma lícita e da maneira que entenda ser mais eficiente.

2. A liberdade de contratar prevista no art. 5º, II, da CF é conciliável com a terceirização dos serviços para o atingimento do exercício-fim da empresa.

3. O thema decidendum, in casu, cinge-se à delimitação das hipóteses de terceirização de mão-de-obra diante do que se compreende por atividade-fim, matéria de índole constitucional, sob a ótica da liberdade de contratar, nos termos do art. 5º, inciso II, da CRFB.

4. Patente, assim, a repercussão geral do tema, diante da existência de milhares de contratos de terceirização de mão-de-obra em que subsistem dúvidas quanto à sua legalidade, o que poderia ensejar condenações expressivas por danos morais coletivos semelhantes àquela verificada nestes autos.

5. Diante do exposto, manifesto-me pela existência de Repercussão Geral do tema, ex vi art. 543, CPC".

Como é possível notar, o relator entendeu que a consolidada posição da Justiça do Trabalho, de admitir terceirização apenas no caso de atividade-meio e quando não exista pessoalidade e subordinação direta, deve ser discutida à luz da liberdade contratual e do princípio geral inscrito no art. 5º, inciso II, da Constituição: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

É dizer: deve-se verificar se o tratamento judicial do tema, a partir da caracterização, caso a caso, dos serviços prestados como atividade-meio ou atividade-fim, pode persistir sem que haja lei que regulamente a matéria.

De imediato, impõe-se a tarefa de compreender o que está em discussão e quais os efeitos da declaração de repercussão geral, para então se iniciarem os desdobramentos da discussão.

O caso eleito como paradigma para o tema da repercussão geral remonta a um conjunto de denúncias formalizadas junto ao Ministério Público do Trabalho (MPT) em Minas Gerais, pelo Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Extração de Madeira e Lenha de Capelinha-Minas Novas, a respeito das condições de trabalho na indústria de celulose naquela região. De acordo com informações do DIAP, seguiu-se às denúncias um processo de intensa fiscalização do MPT, que “constatou a existência de contratos de prestação de serviços para as necessidades de manejo florestal (produção de eucalipto para extração de celulose). Ao todo foram identificadas 11 empresas terceirizadas para o plantio, corte e transporte de madeira, mobilizando mais de 3.700 trabalhadores”.

A partir do processo de investigação inicial, foram propostas ações civis públicas requerendo a imediata suspensão da terceirização da atividade e a condenação das empresas por danos morais coletivos.

Em uma dessas ações, a empresa Celulose Nipo-Brasileira S.A. (Cenibra) foi condenada pela Justiça do Trabalho da 3ª Região (Minas Gerais), que corretamente aplicou a Súmula nº 331 do TST, para caracterizar as atividades terceirizadas como atividade-fim da empresa.

A empresa recorreu à instância máxima do Judiciário Trabalhista, alegando, em síntese, que sua liberdade de contratar serviços prestados por outra empresa teria sido violada pela decisão condenatória. Em 2012, no entanto, o TST inadmitiu o recurso da empresa, unicamente em razão de questões de índole processual: entendeu-se que a matéria não estava prequestionada e que a pretensa violação à liberdade de contratar, ainda que fosse existente, não teria sido violada diretamente pela decisão, que corretamente aplicara dispositivo de súmula do tribunal.

Ainda naquele ano, o caso chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), sob a forma de Agravo em Recurso Extraordinário. Em decisão de 19 de abril de 2013, o ministro Luiz Fux negou seguimento ao recurso, pelas mesmas razões que fundamentaram a decisão do TST. Considerou, ainda, que a controvérsia havia sido resolvida na Justiça do Trabalho em Minas Gerais simplesmente mediante a aplicação de normas infraconstitucionais, o que impediria o exame da questão pelo Supremo Tribunal Federal.

A Cenibra recorreu, então, à primeira turma do STF, por meio de um agravo regimental julgado em 11 de junho de 2013. O colegiado reafirmou a decisão anterior do relator. Caso a decisão transitasse em julgado, o processo seria encerrado com uma importante vitória para os trabalhadores do segmento, pois se configuraria o vínculo direto entre aqueles e a empresa que efetivamente tirava proveito do seu trabalho.

No entanto, a Cenibra opôs embargos de declaração à decisão da 1ª turma, reafirmando os fundamentos anteriormente já sustentados e reiteradamente rechaçados pelo Poder Judiciário. Aqui, impõe-se explicar, especialmente a não iniciados nas tecnicalidades do direito, que os embargos de declaração são uma forma de impugnar decisões simplesmente para corrigir omissões, contradições ou obscuridades. Somente em situações absolutamente excepcionais esse instrumento pode servir para modificar decisões já tomadas.

Surpreendentemente, o ministro Luiz Fux voltou atrás no seu posicionamento anterior, passando a compreender que “a proibição genérica de terceirização calcada em interpretação jurisprudencial do que seria atividade-fim pode interferir no direito fundamental de livre iniciativa, criando, em possível ofensa direta ao art. 5º, inciso II, da CRFB, obrigação não fundada em lei capaz de esvaziar a liberdade do empreendedor de organizar sua atividade empresarial de forma lícita e de maneira que entenda ser mais eficiente”.

Diante disso, reconheceu que há matéria constitucional discutida no caso e que, além disso, a questão poderá repercutir “na situação jurídica de milhares de sociedades empresariais brasileiras que contratam força de trabalho por meio do regime de terceirização”.

É claro que uma tal decisão provoca, naqueles que são contrários à precarização do trabalho, uma perplexidade inicial, inclusive em função do risco de eventual decisão favorável à empresa significar uma ruptura com a jurisprudência consolidada das cortes trabalhistas. Porém, a decisão mencionada não antecipa nenhum posicionamento definitivo do STF e deve ser visualizada a partir dos seus efeitos concretos.

Até 2007, todos os recursos extraordinários dirigidos ao STF nos quais se discutia matéria constitucional deveriam ser apreciados pelo tribunal. No entanto, com a Emenda Constitucional nº 45/2004, criou-se um requisito adicional para a admissão desses recursos: a repercussão geral. Esse requisito, um verdadeiro filtro dos casos que podem chegar ao STF, somente foi regulamentado pela Lei nº 11.418/2006, que acrescentou dispositivo ao Código de Processo Civil no qual se prevê que “para efeito da repercussão geral, será considerada a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa”.

Desde a data em que essa lei entrou em vigor, quando o STF se pronuncia pela existência de repercussão geral de um tema, todos os recursos sobre a mesma matéria que estejam localizados nas instâncias inferiores ficam sobrestados, aguardando o pronunciamento definitivo do Supremo sobre a questão.

Já se pode antever, assim, que a declaração de existência de repercussão geral sobre a matéria da terceirização de atividade-fim terá grande impacto imediato sobre a Justiça do Trabalho. Apenas no âmbito do TST, em dado de 12 de maio de 2014, o tema da terceirização respondia por mais de 6% do volume total de processos, correspondendo a mais de 16 mil casos que poderão ser suspensos, apenas naquela corte, em decorrência da decisão do STF.

Deve-se, alertar, porém, que o reconhecimento da repercussão geral não impede o ingresso com novas ações por trabalhadores que compreendam que seus direitos tenham sido violados. Os processos em primeira instância podem ser regularmente instruídos e julgados, mas os recursos correspondentes poderão ser paralisados em razão do aguardo de pronunciamento definitivo do STF, o qual deverá obrigatoriamente ser observado por todos os tribunais do país que venham a julgar a mesma questão.

É de fato um desafio enorme que se põe diante de nós. Quem luta ao lado de trabalhadores e trabalhadoras, no entanto, não pode sucumbir às ameaças e aos riscos. A política, os direitos e as vidas como disputa: é disso que se trata mais uma vez. Certos e certas do lado em que estamos e do nosso papel nos embates persistentes entre capital e trabalho, tentaremos fornecer, nas próximas semanas, as contribuições que forem possíveis para reforçar as fileiras de quem tem a certeza de que trabalho humano não deve ser mercadoria.

Há uma enorme responsabilidade que agora nos persegue: descortinar a verdade por trás da nuvem de fumaça da terceirização. Por isso é que se faz urgente refletir sobre seus impactos sociais, econômicos, jurídicos, sanitários e políticos, a fim de que se resista, uma vez mais, às investidas contra as conquistas de trabalhadores e trabalhadoras, obtidas a duras penas e ao custo de inúmeras vidas e inúmeros projetos interrompidos.


[1] Não se manifestaram sobre a questão o ministro Joaquim Barbosa e a ministra Cármen Lúcia. De acordo com a previsão regimental, o silêncio no Plenário Virtual implica o acompanhamento do voto do relator.

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